UMA HISTÓRIA BRANCA

o mundo entraria em colapso sem espelhos
provavelmente fui longe demais com esta afirmação
pareço apelar mais uma vez a figura quimérica do ego
mas com certeza não é disso que se trata
e não necessariamente o mundo todo colapsaria
talvez se todas as coisas que possam refletir nossa imagem desaparecessem
aí sim seria a ruína daquilo que acredito ser meu mundo
pois não vejo tragédia maior que a perda de referência de si
já que não consigo referenciar aquilo que há além de mim
e para além de mim poderá haver tudo o que não me interessa
e o que me produz tão incostante nesta vida não deveria pertecer a outrem
não surpreende a punição pela vida eterna dos vampiros ser tão cruel
ao meu ver a extensão tediosa do infinito não deveria impedir a autoimagem
é uma crueldade inimaginável - o roubo de qualquer indentidade
o horror da noite ao atravessar o corredor e o espelho não provar sua existência
ser persona é deter uma casca única e reconhecível pelos outros
e se não houver isto o que nos restará?
deveremos prestar atenção ao próximo como criaturas similares a nós?
e como saberei que são outros se não posso ver quem sou?
não trocamos o continente inteiro por um punhado de espelhos?
é tão controverso assim amar a própria imagem e semelhança?
se narciso resolveu mergulhar tão profundamente no próprio reflexo
ele é culpado de ter sido amaldiçoado pelo amor que sentia por si mesmo?
narciso foi o verdadeiro romântico no final das contas
nada provará o contrário enquanto selfies e filmes e videoclipes e propagandas e games e redes sociais e política e sexo e deus e o diabo e guerras e madonnas e gagas existirem
E TODOS ELES E ELAS EXISTEM PORQUE A IMAGEM SE ALIMENTA RETROATIVAMENTE E SEMPRE ENCONTRARÁ UM TEMPLO DEVOTO NA MINHA PELE OBVIAMENTE BRANCA E LEVEMENTE IMPURA PARA VARIAR